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por Nova Ordem de Jesus. 29/04/2016 - 47 min leitura
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Jesus, resolvido a não fugir do perigo, cede, apesar de tudo, uma vez mais, aos rogos de seus amigos e concorda em mudar-se para uma casa colonial distante da que ocupava. Os sacerdotes temiam a oposição do povo e queriam prender o Messias inesperadamente e a sós, para o que conseguiram enganar a Judas, que os serviu a contento. Dá o Mestre suas últimas instruções a seus discípulos, promete-lhes seu auxílio depois de morto e despede-se carinhosamente deles. Jesus é preso.
A última vez que Jesus voltou de Jerusalém a Betânia, manifestou a intenção de não lutar mais, de não fugir mais, e de esgotar o cálice da amargura para obedecer a seu Pai Celeste.
“Não me desvieis do objetivo, disse, porém caminhemos juntos. Rodeai-me de carinho e de honras para ocultar a meus olhos a ingratidão do povo e para facilitar o remorso de meus acusadores.
“Todos dirão: Pois que o amam, o seguem, tributam-lhe honras, há de ser porque vêem sempre nele o Messias, filho de Deus.
“Não vos aflijais pois demasiado por nossa separação carnal, e cumpri minha lei como se ainda me encontrasse entre vós. Minha lei é uma lei de amor; o espírito a ditará em todo tempo.
“Paz aos homens de boa vontade!
Eis o que entendo com estas palavras.
“O homem vê-se continuamente agitado por desejos e arrependimentos. Sua alma jamais se vê satisfeita, seu espírito é ávido de bens efêmeros, sua vida passa entre a ignorância e a ambição.
“Mas se o homem se inicia mediante a vontade na emanação divina, sua alma torna-se livre e feliz, seu espírito percorre caminhos até então desconhecidos, sua vida aspira somente a uma posse, a da ciência.
“Sim. — Paz aos homens de boa vontade! — Eles são os obreiros de Deus, os preparadores de seu reino na Terra.”
A festa da Páscoa devia ter lugar, nesse ano, nos últimos dias de março e primeiro de abril (exprimo-me de modo a ser entendido). Quis, como era costume, ir a Jerusalém; porém, não ignorava que a ordem de prender-me seria expedida e que o decreto de morte já tinha sido pronunciado.
Nicodemus, José de Arimatéia e seus amigos, em número de quatorze, haviam-se abstido de qualquer deliberação, não querendo comprometer os meios de servirem-me nos últimos momentos, de salvarem-me talvez. Depois de terem-se esforçado em fazer mudar as disposições do povo a meu respeito, eles recorreram a Pôncio Pilatos, que lhes deu esperanças.
Os dezesseis foram substituídos e ao tribunal reuniram-se dez membros suplentes. Todos condenaram a Jesus como impostor, sedutor, aliado do espírito das trevas.
O defensor escolhido pelo tribunal para fazer valer as causas atenuantes de meu delito, havia-se alongado em uma difusa dissertação sobre a monomania religiosa e tinha chegado à conclusão, de acordo com a opinião da gente de Nazareth, que eu não era mais que um extático digno de lástima e desprezo.
“É necessário que este homem morra, exclamou o Sumo sacerdote Anás, porque é culpado de lesa-majestade divina, com todo o conhecimento de um doutrinário. — Por que motivos nos vêm falar de monomania, de demência, quando tudo demonstra uma rara perspicácia, uma ambição devoradora, um caráter dos mais perigosos? — Ainda que a demência estivesse provada, é preferível a morte de um homem inconsciente à queda do Sacerdócio e à ruína de uma nação.”
No domingo, 27 de março, teve lugar nossa partida de Betânia. O trajeto foi o mais animado, e as honras tributadas a minha pessoa acariciaram as ilusões de meus discípulos. A pouca distância de Betânia encontramos alguns estrangeiros, cujo número foi aumentando à medida que nos íamos aproximando da cidade. Cedi aos seus desejos de os deixar seguir-nos e entramos em Jerusalém como triunfadores.
Não é verdade que eu estivesse montado em um jumento, porém é certo que me foi proposto, recusando eu o oferecimento.
Muitos se apinhavam a meu redor. Ramos com folhas e flores caíam a meus pés, e o povo de Jerusalém unia-se ao povo nômade para cumular-me de entusiastas demonstrações. O povo é sempre imitador e instrumento. Reproduz-se com seus instintos atávicos e obedece a interesses que não são os seus. Por momentos escravo embrutecido ou déspota insensato, o povo conhecerá a verdadeira força somente mediante os benefícios da educação moral. A educação moral encadeia os instintos e desenvolve a razão. Quando ela se encontre na ordem do dia, as classes dirigentes terão compreendido o verdadeiro progresso e a Terra se elevará para Deus.
Uma das primeiras pessoas que reconheci no meio da multidão, que vinha ao nosso encontro dos arredores da cidade, foi meu irmão Eleazar. Tive que supor que meus irmãos mais velhos estavam juntos e procuravam combater a má influência produzida por meus outros irmãos.
Este dia converteu-se depois para mim numa responsabilidade gravíssima. O povo que se havia demonstrado entusiasmado por minhas últimas honras, acusou-me depois, perante Pôncio Pilatos, de haver levado minhas pretensões humanas tão longe, até fazer que me chamassem rei.
A sabedoria e boa vontade do juiz romano levaram a cousa de brincadeira.
“Provavelmente, disse Pôncio, Jesus se julga o primeiro dos hebreus e a palavra Rei exprime sua idéia. Seja pois Rei dos hebreus! — Mas este rei não pode, sob nenhum pretexto, causar prejuízo à segurança do Império.”
Na tarde de domingo (27 de março) combinamos passar a noite em Jerusalém. No dia seguinte me vi assediado para que deixasse aquelas paragens para sempre; permaneci imperturbável e essa espécie de delírio que precipitava minhas palavras, passou mais tarde como profecia.
Prometi a Marcos chamá-lo o mais depressa possível ao reino de meu Pai, e às mulheres que se ajoelhavam diante de mim, disse-lhes: “Vós tereis a coragem de acompanhar-me até à morte e Deus colocará sobre vossas frontes, como sobre a minha, a coroa do martírio”.
Meus discípulos de Galiléia juravam todos que me rodeariam e me defenderiam até derramar a última gota de seu sangue. Acolhi estas manifestações com um melancólico sorriso e nada respondi. Depois, dirigindo-me a minha mãe, disse-lhe:
“Tu tens entre os companheiros de teu filho, minha mãe, um filho e um irmão que te recordarão o ausente e viverás para que não seja negada minha ressurreição como espírito. Da resignação de meus discípulos, da vossa principalmente, depende a conservação de minha doutrina no presente, do mesmo modo que o porvir desta doutrina depende dos sucessores de meus discípulos”.
Consenti em evitar meus inimigos ainda mais uma vez e fomos hospedar-nos em uma casa colonial, onde já em outras ocasiões havíamos encontrado boa acolhida.
Gethsemani, situada em uma paragem elevada de onde se avistava o mar Morto, o Jordão, as planícies e as montanhas de Galiléia, havia de oferecer-nos um abrigo tranqüilo, ao menos por algum tempo.
O povo nos tinha afeição, e os sacerdotes, que temiam mais que tudo as manifestações populares, hostis a seu poderio, ter-se-iam abstido, seguramente, de proporcionar-lhes um pretexto para uma agressão brutal. Procuraram um meio para apoderarem-se de minha pessoa sem testemunhas e sem ruído e a vergonhosa defecção de Judas foi obra deles.
De meus discípulos de Galiléia, Judas foi o único que não me acompanhou a Getsemani, na manhã de segunda-feira. Alcançou-nos à tarde e sua atitude chamou a atenção de Pedro, que me disse: “Que tem, pois, Judas? Olhai-o quão preocupado está”.
Aproximei-me dele e perguntei-lhe por que nos havia deixado no momento de nossa partida de Jerusalém.
“Tinha ainda que visitar algumas pessoas, disse-me, e por outra parte eu tinha desejos de me informar das últimas disposições tomadas a nosso respeito. Elas são de tal natureza que nos tiram toda a esperança de poder fugir à vingança dos nossos inimigos.”
“Tu não deves estar triste por uma solução que eu tenho procurado, disse eu. Mostra-te animoso no momento do perigo e guarda a lembrança do Mestre quando já não me encontre convosco.”
Estendi a Judas a mão, que ele apertou fracamente; seu olhar esquivou-se de mim. Entendi...
Indeciso a princípio, tomei depois o partido de dissimular para com ele e de o trazer sob uma pressão a todos os instantes. Entretinha-o, estimulava-o a expansões, para observar melhor suas reticências e suas perplexidades.
Na quarta-feira, Judas propôs visitarmos as plantações de oliveiras que cobriam o flanco da montanha de Getsemani pelo lado de Jerusalém e deu como pretexto de sua lembrança as modificações por que devia ter passado esta localidade. Propus que o passeio se efetuasse no dia seguinte
***
O lavapés era uma das instituições de João; uma demonstração da igualdade humana. O senhor é o irmão de seu servo. A posição social deixa de existir quando se trata de adorar a Deus. A força moral determina a elevação e o homem demonstra-se muito maior com o cumprimento de seus deveres, que com esplêndidas demonstrações de suas faculdades diretivas. Dei provas do meu respeito pelo apóstolo, adotando muitas de suas práticas religiosas, porém conservei somente as que me pertenciam, pela diferença que estabeleci entre elas. O lavapés era celebrado por mim e meus discípulos, todos os anos, somente na véspera do grande sábado de Páscoa. A Ceia, a grande refeição da noite, precedia a este ato. Nossa refeição da noite tinha uma espécie de solenidade, devido à exclusão de toda outra pessoa, que sempre mantivemos durante nossa vida nômade, quando nos encontrávamos todos reunidos. Meus primeiros doze discípulos e meu tio Tiago manifestavam-se felizes pela resolução tomada por mim de não admitir a nenhum estranho em nossa refeição noturna, e eles aproveitavam esses instantes, que alongavam a seu gosto, para identificarem-se melhor com as palavras e as intenções do Mestre. Nesses momentos, precisamente, disseram-se e repetiram muitas recomendações. Muitas promessas, e também muitas prédicas, baseadas no conhecimento profundo da natureza humana. A sexta-feira anual do lavapés parecia-me muito longe. Sentia que um perigo iminente me ameaçava, e queria dar a meus últimos dias os caracteres de uma fatal precisão dos acontecimentos. Por isso, pedi a meus discípulos que procedessem nessa mesma noite ao lavapés. A surpresa de todos afligiu-me, porque deixava-me entrever seus pressentimentos e Judas me inspirou ainda mais piedade que desprezo nesses momentos solenes, em que manifestei a quase certeza de ser, muito breve, aprisionado. O afeto de meus discípulos de Galiléia era sincero; mas duvidei, com razão, de sua firmeza.
Nessa reunião da tarde, que foi a última, eu lhes conferi o título de apóstolos, entrando em particularidades referentes ao que meu espírito entendia dos trabalhos e sacrifícios que deviam levar-se até o fim, do que minha alma encerrava de solicitude e amor, prometendo-lhes o poder de governar o mundo.
“Fazei de minhas instruções a regra de vossa conduta e chamai-me quando tenhais que discutir com os homens de má-fé.
“Ou seja que permaneçais unidos, ou seja que vos separeis pela boa causa, eu me encontrarei no meio de vós e com cada um de vós.
“A fé não perecerá nunca, porém se tornará obscura pela falsa direção dada a meus ensinamentos.
“Aos que sustentarem a verdade, eu lhes retribuirei com liberalidade meus consolos e esperanças; porém, ai daquele que se distancie de mim! A voz do espírito retumbará no espírito e os acontecimentos se encadearão de tal maneira, que a verdade se restabelecerá e os impostores serão confundidos e os fervorosos serão recompensados e castigados os tíbios.
“A malícia e a perversidade do mundo vos preparam maus dias. Conservai vossa fé pura de todo o fingimento e não ponhais limites à vossa caridade. A força vem de Deus e eu vos transmitirei a força.
“Pedi os tesouros de Deus e desprezai as riquezas da Terra. Quem pretenda elevar-se entre os homens, será humilhado diante de Deus.
“Vós sois meus apóstolos; pregai a palavra de Deus e anunciai seu reino por toda a Terra.
“Vós sois meus discípulos queridos; ajudai os pobres, eles são meus membros; facilitai o arrependimento, prometei o perdão em nome de Deus, nosso Pai.
“Tudo o que perdoardes, será perdoado e a graça vos acompanhará na paz e nos perigos.
“Não devolvais jamais mal por mal, mas forçai a vossos inimigos que vos respeitem. Comprovai vossa fé mais com obras que com discursos, e no extremo infortúnio recordai minhas promessas e meu martírio.
“Estas promessas as cumprirei se tiverdes sido fortes e tiverdes compreendido e praticado o que ordeno e o que eu mesmo tenho praticado.
“Uma vida tranqüila não é uma vida de apóstolo e a regularidade da conduta não constitui a virtude de um discípulo. São necessárias ao apóstolo forças e coragem para afrontar o escárnio, o desprezo, a perseguição, a escravidão, a morte; e o heroísmo deve caracterizar os discípulos de Jesus.
“O apóstolo demonstrará Deus e sofrerá pela verdade.
“O discípulo abandonará os bens do mundo e as honras do mundo. Abandonará o pai, a mãe, a mulher, os filhos, antes que renegar minha doutrina, já seja com os atos, já seja com as palavras, já seja com a abstenção e com o silêncio.
“Vós sois meus apóstolos e meus discípulos; eu terei que contar convosco e não obstante... eu sei desde já que muitos de vós me atraiçoarão.”
Encontrava-me à mesa, rodeado pelos doze; meu tio Tiago formava o décimo terceiro e estava para partir o pão e começarmos a refeição. Meus apóstolos levantaram-se bruscamente:
“Senhor! Senhor! — prorromperam. — Por que nos causas esta tortura? — Por que chamar-nos traidores, depois de haver-nos confiado o êxito de tua obra?”
“Os que me atraiçoarem por fraqueza, respondi eu, se arrependerão; somente o que me tenha atraiçoado por vingança, sucumbirá sob o peso de seu delito”.
Judas mantinha os olhos baixos, porém ninguém lhe prestou atenção além de mim. Recomendei a meus apóstolos que guardassem a lembrança dessa noite e ofereci-lhes o pão; Judas, que se encontrava à minha direita, serviu-se em primeiro lugar. João, colocado à minha esquerda, como sempre, inclinou-se para mim e disse: “Em qual de nós pensaste tu, agora, ao falar de traição?”
Respondi a João:
“O que me atraiçoará ocupa neste momento um lugar de honra, porém, outros também me atraiçoarão mais tarde e muitos me abandonarão covardemente ao longo do caminho do sacrifício.”
Continuei servindo os meus apóstolos e insisti para que me deixassem nessa tarefa. Pedro, à minha frente, estava distraído; não comia nem bebia; dirigi-lhe estas palavras:
“Tu já não és o pescador de peixes, amigo meu, estás aqui convertido em pescador de homens. Tuas redes serão agora os argumentos e recolherás em tua barca aos pobres náufragos; teus companheiros te ajudarão na árdua luta, que haverá que sustentar contra os elementos; vós outros não imitareis a esses espíritos arduamente orgulhosos e céticos, que se preocuparão das causas da queda e da enfermidade, antes de socorrer ao ferido e de aliviar ao enfermo.
“Feliz daquele que compreenda estas palavras e que as ponha em prática!
“Felizes os fortes! Eles submeterão suas paixões à razão e verão outros tantos irmãos em todos os homens. Conduzir para Deus os insensatos que o desconhecem, os ímpios que o ultrajam e livrar a Terra do fermento da dissolução, é cooperar poderosamente para a concórdia universal.
“Convertei-vos em pescadores de homens vós todos, amigos meus, e reuni o maior número de espíritos que possais.
“Para ser hábil no ofício de pescador de homens é necessário ter o dom da doçura e da firmeza, o direito de falar e de se fazer ouvir.
“Tereis o direito de falar quando vossa consciência se encontre tranqüila, e sereis ouvidos se vós mesmos estiverdes convencidos da verdade que ensinais.
“A elevada posição de um servo de Deus não ressalta no mundo porque a força e a luz que se encontram nele, não as emprega jamais para proporcionar-se nenhum poderio. As honras e as riquezas não poderão portanto ser o privilégio de meus apóstolos e, se eu lhes asseguro o império do mundo, é com a condição de que sejam ternos de coração, firmes de espírito e que conservem o direito de falar e o dom de serem escutados.
“Os preguiçosos se converterão fatalmente em hipócritas. Não havendo tido a coragem de me seguirem deixarão que se espalhem dúvidas a respeito de minha pessoa; e o desejo de alegrias mundanas, a sede de honras, o amor das riquezas, os arrastarão às prevaricações, à vergonha de parecerem discípulos meus, entretanto me negarão também com ações ocultas.
“Porque haverá preguiçosos e hipócritas, Jesus se manifestará novamente para separar o trigo do joio.
“O que não é por mim é contra mim. Todo o equívoco é uma mentira; a verdade sou eu.
“Nada temais, vos ampararei e vos auxiliarei, e meu espírito manterá o lugar que ocupam agora meu corpo e meu espírito no meio de vós.
“Eis a hora cuja aproximação me enche de angústia, não por mim, senão por vós. Nunca, como agora, vos hei amado. Honrai-me quando não estiver já entre vós, amando-vos uns aos outros e perdoando aos que vos tenham ofendido.
“Permanecei fiéis à minha voz e adorai ao Senhor nosso Pai, predicando em todas as partes a paz e o amor.
“Não tomarei mais deste suco de uva convosco; mas quando vos reunirdes em minha memória, sentireis minha presença na alegria que se infiltrará em vossas almas, na certeza de vossos espíritos sobre todas as cousas.
“Penetrai minhas palavras na atividade do apostolado do mesmo modo que no silêncio de vosso recolhimento, e o que tiverdes de pedir para o culto de Deus vô-lo recordarei. Mas não enfraqueçais vossos conhecimentos das cousas espirituais, misturando-lhes cousas da Terra. Nossa aliança é a este preço, quer dizer, que deveis desprezar o que eu tenho desprezado e honrar o que eu tenho honrado.
“Os discípulos não são mais que o mestre, ensinai pois minhas doutrinas sem tirar-lhes nem acrescentar-lhes nada e refutai as dúvidas e os erros de maneira a convencer aos incrédulos a respeito de vossa ciência. Esta ciência não vos abandonará; o espírito beberá no espírito, e, até o fim dos séculos, a graça resplandecerá para os homens de boa vontade.
“Meus queridos discípulos: amanhã talvez nos separaremos. Amai-me como vos tenho amado e confundi a todos os homens no vosso amor, na minha lembrança. Dou-vos o mundo para conquistar e minha luz vos guiará. Prometo-vos a glória de Deus.
“Nomeio-vos meus sucessores e vos abençôo.
“Que a paz seja convosco e com vosso espírito.
“Vinde dar-me o beijo da despedida”.
Meus apóstolos precipitaram-se sobre mim. Eu permaneci de pé e meu semblante refletia uma intensa emoção. Judas beijou-me como todos.
Era meia-noite quando enxugamos os pés de meus apóstolos. Digo enxugamos porque meu tio Tiago, cuja ternura por mim se associava a um profundo sentimento de devoção prática, me ajudava todas as vezes que devia manifestar com uma tarefa pessoal, o culto de uma idéia religiosa. Nesta ocasião suplicou-me que lhe cedesse a maior parte do sacerdócio; é a palavra que empregou.
Eu limitei-me a servir a Judas, Pedro e Filipe, dando como motivo de minha preferência a idade mais avançada desses três apóstolos.
Todos os meus esforços tinham que ser em vão. Judas não quis acreditar em meu carinho, nem compreender que eu o havia adivinhado, nem admitir que me sentia pesaroso por minhas anteriores predileções, nem aplacar o orgulho para escutar a consciência.
Na quinta-feira pela manhã me senti algo consolado da ingratidão, devido a uma prova de amor.
Simão de Betânia e seu parente Eleazar vieram visitar-me. Minha mãe e as demais mulheres mandaram-me suplicar que as recebesse em meu retiro e meus três irmãos mais velhos desejavam reunir-se a mim no meio da sorte adversa, Marta encontrava-se entretanto em Betânia, devido à sua fraqueza, encontrando-se cada vez mais enfermiça, na casa da irmã, a quem havia ocultado minha fuga de Jerusalém. Confiei a Simão o encargo doloroso de preparar meus amigos para o fatal desenlace e volvi sobre o tema de que o dia estava próximo, que minhas horas estavam contadas e que a reunião de nossos espíritos teria lugar na casa de meu pai.
Estas palavras provocaram a terna emoção de Simão, tive-o abraçado por largo tempo e minhas lágrimas se confundiram com as suas. Alguns instantes depois Simão e Eleazar empreendiam o caminho de regresso a Jerusalém.
Eu havia negado a todos a permissão para me acompanharem a Getsemani, porque queria consagrar o tempo que me ficava livre, às expansões de minha alma diante dos que escolhi para meus sucessores. Existia ainda outro motivo para esta disposição de meus últimos dias; a presença de minha mãe e de minhas santas companheiras teria constituído um perigo real nos momentos em que o apóstolo, o fundador, o homem, devia encontrar suas forças para preencher a missão de Deus. Jamais minha confiança e meu amor se haviam traduzido em tão grande abandono e ardor, jamais a demonstração do porvir se manifestou tão clara de entre o encadeamento de minhas visões espirituais.
“Vós sois minha carne, sois meu sangue, dizia eu, meu espírito está em vós e todas as potências da Terra não conseguirão predominar sobre o vosso poder, que será universal.
“Se não recordais todas as minhas palavras, conservai seu espírito, escolhei entre minha pessoa e o mundo, para não servir a dois senhores.
“Ainda que vos separeis de mim por algum tempo, mais ou menos longo, minha doutrina não deixaria, por isso, de ser a luz do mundo, porque outros virão depois de vós, os quais reporão o que vós tiverdes tirado e escutarão minha voz. Eu lhes direi tudo o que vos disse e Deus terá seu templo em toda a Terra.
“O mundo está povoado de hipócritas. Eles fazem o contrário do que se manda; outros honram publicamente o que renegam no íntimo de sua consciência; meus discípulos terão que proclamar a verdade e seguir a moral que ela encerra; a estes eu os reconhecerei.
“O mundo está povoado de fanáticos, de supersticiosos e de incrédulos; meus discípulos terão que instruir os ignorantes e convencer os incrédulos, com exemplos de virtude e com a referência de nossa aliança, antes e depois da morte corporal.
“Favorecerei somente àqueles, cujo espírito seguir meu caminho e que compartilharem, do fundo de sua alma, de todos os infortúnios.
“Concedo-vos meu poder; porém, se vos tornásseis infiéis, eu vô-lo retiraria, e minha luz seria retardada no mundo, e o nome de Deus seria blasfemado, e a desolação, a confusão, o delito e a impiedade reinariam em todos os lugares.
“Sede meus substitutos, e não somente meus sucessores, e dizei: Somos sua carne, seu sangue, seu espírito: O que fazemos em sua memória, o Senhor o ordena e o cumpre em nós.”
Irmãos meus, o sentido destas palavras: Vós sois minha carne, meu sangue, meu espírito, o sentido destas palavras, repetidas muitas vezes durante meus últimos dias, foi tergiversado, com o fim de erigir um dogma ímpio e ao mesmo tempo falho de razão.
“Fazei todas as cousas em meu nome, obrai como se me encontrasse visivelmente entre vós”, são formas que eu empregava com freqüência, para dar à presença de meu espírito a autoridade da lembrança de minha vontade imutável; para incrustar no pensamento de meus apóstolos o mais irresistível de meus meios de ação, sobre suas práticas futuras. É justamente ao império exercido por minha promessa renovada, de encontrar-me sempre entre eles, que se deve atribuir a docilidade fervorosa de meus representantes imediatos.
O passeio projetado devia ter lugar ao cair do dia. Meus apóstolos pareciam tê-lo esquecido e o próprio Judas permanecia sob o encanto das melodias da alma.
Eu evocava a realidade do passado e os fantasmas do porvir. Todos participavam por igual de meus transportes de ternura, e meus olhares, meus sorrisos, os enchiam de alegria.
Eu tinha a certeza de que se ocultava uma surpresa sob as aparências de uma descuidada curiosidade, quando lembrei a meus discípulos a hora favorável para que nossa excursão não fosse turbada por importunos, nem ameaçada por uma completa escuridão ao regressarmos.
Saímos, uns alegres com a idéia de que meus pressentimentos do dia anterior não fossem confirmados, os outros silenciosos, quase tristes.
Manifestei a Judas meu desejo de percorrer com ele o caminho até o jardim de Getsemani e apoiei-me em seu braço. Falamos de cousas inteiramente secundárias, durante quase quarenta minutos de caminhada, depois sentei-me à sombra de uma figueira e meus apóstolos tomaram assento sobre diversos montões de pedra. Judas afastou-se de mim; eu havia previsto isto. Dirigia ao redor olhares distraídos para os espessos bosquezinhos de oliveiras, cuja extensão e espessura impedia a vista por todos os lados.
Levantei-me depois de alguns instantes de descanso, chamando Judas meu companheiro de jornada. Foi chamado inutilmente.
Então pronunciei palavras de acusação que não podiam ser alteradas por nenhuma dúvida, dada a sua clareza.
“Aquele que vós chamais está aqui perto, ele está para chegar. Quando o vejais, a vítima será entregue ao verdugo.”
Os gritos, as imprecações de meus apóstolos ouviram-se ao mesmo tempo que chegava até nós o ruído do passo pesado de muitos homens. Judas não apareceu; tinha-lhe faltado a audácia do delito no último momento.
Os soldados, com divisas romanas, eram em número de oito; dois familiares do Santo Ofício os acompanhavam; estes últimos apontaram-me à tropa armada e um soldado deitou-me as mãos. Pedro agrediu este homem; eu me apressei em repreender a meu apóstolo com estas palavras:
“Acalma-te, amigo meu, a resistência é inútil. Sem curvar a cabeça como culpados, convém saber sofrer a lei humana com resignação”.
João enlaçou-me com os braços, meu tio Tiago implorava a Deus, de joelhos, e meu irmão deitou a correr em direção a Jerusalém. Todos os outros pareciam presa do terror. Mateus, Tomé, Alfeu, Tiago, o irmão de João, acompanharam-me até à casa do Sumo- Sacerdote Caifás; Lebeu, Filipe, Judo, Simão, irmão de Pedro, voltaram a Getsemani. Depois de minha morte foram juntar-se com os que estavam escondidos em Jerusalém.
Fizeram sentar meus discípulos em um banco do pátio e a mim introduziram-me em uma espaçosa sala, onde se encontravam reunidos Caifás, o Sumo sacerdote Anás, genro de Caifás, e uma delegação do Sinedrim composta de vinte membros. O Sumo- Sacerdote procedeu imediatamente ao meu interrogatório:
“Jesus de Nazareth, és acusado de sedução, de profanação, de malefícios e como tal se vos condena à pena de morte.
“Para obedecer à lei que te castiga, devemos ouvir tua defesa pessoal e facilitar a tua confissão ante a exposição das acusações que pesam sobre ti. Aqui está o resultado dos depoimentos que recolhemos.
“O nazareno Jesus associou-se principalmente a fatores de desordem, que tinham o propósito provado de sublevar o povo contra as leis do Estado.
“Além disso o nazareno Jesus pronunciou-se publicamente contra o respeito devido aos poderes civis. Disse-se reformador da lei mosaica, mediador entre Deus e os homens, filho de Deus, afinal.
“Apoiado neste título monstruoso, por sua impiedade, o nazareno Jesus converteu-se em ídolo de um povo ignorante ao qual anunciava o pretendido reino de Deus, conseguindo cativá-lo cada vez mais, com a aparência sobrenatural de seus atos e de suas predições.
“Jesus de Nazareth, ousas sustentar que és filho de Deus? — Interrogo-te, responde.”
Esta frase era provocada por meu silêncio; meu silêncio continuou.
“E teus milagres, demonstra-os, pois, acrescentou com dureza o Sumo sacerdote. Dize o que possas para atenuar teus delitos e demonstrar a ciência de que pretendes ser possuidor”, continuou Anás.
“Se produzires um milagre, continuou Caifás, acreditaremos em ti e proclamaremos tua filiação divina.”
Um desprezível sorriso acompanhou estas palavras. Levantei a cabeça e encarei meus juízes.
Muitos gritaram: Provoca-nos, não liga importância à justiça de Deus, merece o suplício destinado aos maiores delinqüentes, aos mais endurecidos malfeitores! Ordenaram aos soldados que me levassem.
De um quarto baixo, que dava para o pátio, me foi fácil compreender os propósitos que abrigavam meus apóstolos e os subalternos da casa do Sumo-Sacerdote. Os soldados da guarda foram jogar e parecia haverem-me esquecido.
“Acompanhais o condenado?” — Perguntou alguém a Pedro.
“Não conheço esse homem”, respondeu meu apóstolo. João e seu irmão pareciam estar em boas relações com uma pessoa que os aconselhou a sair para não se comprometerem. Eles seguiram o conselho.
Meu tio Tiago renovou diante de todos o juramento de antes morrer que renegar sua aliança comigo. Arrastados por este ato de coragem e lealdade, Marcos, Alfeu e Tomé assentiram que eram meus discípulos e acrescentaram que não me abandonariam. Pedro e os dois filhos de Salomé eram os que mais haviam demonstrado, exteriormente, sua ternura por mim, dando à amizade as delicadas formas da feliz expressão do semblante e das doces inflexões da voz. Fazendo da submissão o melhor atrativo para a ocupação de seu tempo, tive que vencer muitas dificuldades, para que a excessiva ingenuidade de Pedro desse lugar à independência do pensamento, para que a fogosa imaginação dos dois irmãos se aproximasse ao entusiasmo das naturezas generosas, para guiá-los, até confundir comigo sua vontade e suas esperanças. Esta fraqueza de última hora ultrapassou minhas previsões.
As diversões dos soldados abafaram os ruídos exteriores, e depois de assistir a cenas triviais de jogadores ébrios, fizeram-me o alvo dos gracejos grosseiros desses homens estúpidos e ferozes.
Quando amanheceu, muitos dormiam, outros estavam novamente bebendo e queriam obrigar-me a que bebesse com eles.
Ataram-me juntas as mãos para conduzirem-me à presença do procurador romano.
A arquitetura do pretório era de estilo grego, do qual mostrava suas colunas carregadas de ornatos; blocos de pedra simulavam balcões em todas as janelas, entablamentos em todas as plataformas que ligavam, em todos os pisos, dois corpos paralelos de construção.
O pretório ocupava um espaço bastante extenso.
Uma sala aberta para o público, que oferecia a facilidade de reunião e de palestrar, enquanto não chegava o momento de comparecer, por si ou por intermédio de outros, para algum assunto contencioso ou delituoso.
As sentenças civis eram, prévia apelação, confirmadas ou reformadas pela alta magistratura civil, que tinha seu assento no pretório e que se pronunciava, resolvendo, em última instância.
Os castigos corporais e a pena de morte, qualquer que fosse a religião do condenado e a autoridade que houvesse imposto o castigo, deviam receber a confirmação do delegado da soberania imperial romana, e este delegado era então Pôncio Pilatos.
Pôncio tinha quarenta e dois anos. Era um homem de reto sentir, de caráter débil, terno e afável; porém ambicioso e sempre pronto a sacrificar suas convicções para conservar o lugar que se havia tornado de difícil desempenho, devido às dissidências que diariamente se suscitavam entre os interesses opostos de um povo misto e em luta com as exigências do partido hebreu. Pôncio detestava os hebreus; porém não queria colocar-se muito abertamente em conflito com eles, porque havia sido já apontado por antigas comunicações partidas do ex-Sumo-Sacerdote Anás, como um inimigo sistemático das formas religiosas e das disputas teológicas, questões, diziam as comunicações, que não pertenciam ao procurador.
Apenas Pôncio me viu, passou a mão pela fronte como para desfazer um pensamento, cuja lembrança o fatigasse. Em seguida dirigiu-me as perguntas do costume às quais respondi singelamente e sem excitação.
“Que delito cometeu este homem?” — Perguntou Pôncio, dirigindo-se a um personagem cuja missão parecia ser a de acusar-me e a de estipular a natureza de minha condenação.
“Jesus de Nazareth, respondeu o interpelado, é um revolucionário, um renegado, um fabricante de milagres. Comprometeu a ordem pública e atribuiu-se o poder divino.”
“O subornador, o impostor foi julgado por direito sagrado, porém o demonstrador das liberdades humanas, que está por cima das potências humanas, o devastador das leis sociais, o predicador da igualdade, o desmoralizador das classes pobres, encontra-se sob juízo perante o representante do imperador Tibério.
“Jesus, o filho de Deus, será lapidado como ímpio, ou Jesus de Nazareth, culpado perante Deus e perante o imperador, sofrerá melhor o suplício da cruz? — Nós apelaremos para o povo se for necessário.”
Pôncio ficou estupefato ante tanta audácia. Desta maneira nem mesmo sua opinião se pedia, antes de apelar para o povo. Este povo acolhia, gritando desaforadamente, as palavras que o instituíam juiz supremo, palavras que haviam sido pronunciadas ao ar livre, sobre uma das plataformas de que falamos.
“Que se crucifique!” — Este grito foi imediatamente repetido de todos os lados.
“Intitulou-se Deus e Rei; fez alarde de destruir o templo e reedificá-lo em três dias!”
Pôncio respondeu que o título de rei parecia-lhe um termo de elevação somente entre os hebreus; este modo de iludir a questão do cargo político que se me reprochava, levantou contra mim as mais formidáveis ameaças, os mais amargos sarcasmos.
“Pois bem, se é nosso rei, ponhamos-lhe uma coroa, demos-lhe um cetro e saudemo-lo ao mesmo tempo, Rei dos hebreus e filho de Deus.”
“Diz-nos pois, filho de Deus, seria pelo menos necessário esconder tua mãe, teus irmãos e irmãs. Ah! Já te daremos reinado, até tua entrada no reino de teu Pai, duplo Rei, duplo impostor!”
Pôncio estava desesperado pela inutilidade de seus esforços.
De repente deu ordem para que me desatassem as mãos e anunciou que queria interrogar-me a sós.
Entrei, precedido por Pôncio, em uma sala mobiliada com severidade, cujas saídas estavam todas fechadas. A porta foi fechada pelo lado de dentro pelo procurador, que me ordenou amavelmente que me sentasse, declarando-me que ali não estavam mais que dois homens, dos quais um perguntava ao outro os motivos que o induziram a buscar a morte, atacando a própria essência da lei mo-saica e a persistir no propósito de morrer, pois que havia desprezado as possibilidades de fugir de seus inimigos.
Expliquei a Pôncio minhas inspirações de criança, meus estudos de homem, minhas alianças, minhas esperanças de espírito na luz infinita; fiz-lhe, a grandes traços, um extrato de minha doutrina, das relações entre os mundos e os espíritos, e apresentei a morte ignominiosa, que me esperava, como o glorioso coroamento de minhas honras como Messias.
“E se eu conseguir salvar-vos?” — interrompeu Pôncio.
“Não o intentes, respondi-lhe eu, tu mesmo te verias arrastado pelo furacão popular... escuta...”
Pôncio sorriu desprezivelmente. “Consente em viver retirado, disse, ganharei tempo e empregarei a força.”
“Por outra parte, acrescentou Pôncio, tive um sonho a noite passada a teu respeito e sinto que uma pesada responsabilidade me pertence no presente e para o porvir.”
“Esses sacerdotes que querem a tua perdição me desprezarão por haver tido medo deles; este povo se arrependerá e a posteridade me acusará, quando menos, de fraqueza.”
“A posteridade, exclamei, saberá que tu me ofereceste a vida e que eu quis morrer.”
“Para mim a morte é uma auréola; para mim a vida seria uma deserção, uma covardia, uma queda irreparável.”
Levantei-me indicando assim eu mesmo o fim da entrevista, e acrescentei:
“Da casa de meu pai, na qual estou para entrar, te abençoarei, porque compreendeste a verdade e a defendeste com coragem.”
Voltamos ao lugar que havíamos deixado há pouco menos de uma hora. A multidão era mais compacta e o clamor se tornava sedicioso; ameaçava-se a Pôncio, pedia-se que eu lhes fosse imediatamente entregue.
Havendo conseguido um pouco de silêncio, Pôncio pronunciou estas palavras:
“Este homem, cuja morte vós pedis, é um justo.”
“Não tereis de mim um decreto afirmativo em nome do imperador. O sangue inocente que estais para derramar, caia sobre vós; lavo minhas mãos por tudo o que suceder.”
E Pôncio Pilatos fez derramar água sobre suas mãos em presença do povo que redobrou em vociferações.
Pôncio entrou novamente em seus aposentos. A pessoa encarregada de dirigir os preparativos das execuções perguntou ao povo qual dos quatro delinqüentes, cuja morte estava marcada para esse dia, queria que se lhe concedesse graça de acordo com o costume.
“Não a nosso rei, exclamou a multidão; libertai aquele, dentre os três restantes, que mais vos agrade.”
Entretanto, como entre esses três se encontrava um ladrão e assassino dos mais perigosos, e perfeitamente conhecido, tiveram a idéia de opor-nos um ao outro; para despertar, se ainda existisse nesse povo, um sentimento de justiça.
Pois bem. O povo condenou-me uma vez mais ainda!
Desde esse momento fui convertido em joguete de uma multidão insensata e os soldados, encarregados de minha custódia, uniram-se ao populacho. Sobre minha cabeça foi colocada uma coroa de espinhos, sobre meus ombros um pano de cor escarlate (isto passou-se em um dos pátios do pretório), e todos se inclinavam diante de mim dizendo: “Saúdo-te, Rei dos hebreus.”
Muitos me bateram, um cuspiu-me no rosto.
Ao cabo de duas horas de diversões abjetas e cruéis me despiram de minhas vestes e sobre meu corpo, completamente nu, aplicou-se a tortura da flagelação. Duas lágrimas me queimaram as faces. Foram as últimas.
Era meio-dia quando cheguei ao Gólgota.
Minhas forças estavam exaustas e não me haviam permitido levar o instrumento de meu suplício, que era um tronco de árvore, dividido e ajustado em forma de cruz, e eu mal podia suster-me em pé, quando meu corpo desnudo foi exposto às zombarias mais ignóbeis da mais asquerosa plebe. Mas desta vez, pelo menos, meu espírito, concentrado em radiantes perspectivas, perdia de vista os homens e suas espantosas demências.
Meus pensamentos sobre a cruz tiveram principalmente por objetivo os autores de meu martírio, os ingratos e os fracos, e exclamei:
“Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem!”
Meus sofrimentos sobre a cruz foram a causa da fraqueza do espírito, e disse:
“Meu Pai: Por que me abandonaste?”
Minha consolação sobre a cruz foram a recordação de meus amigos, minha confiança em suas promessas. Divisando minhas santas companheiras e minha mãe protegida e amparada no meio delas, Tiago, o digno irmão da heróica Maria, Marcos, Pedro, os dois filhos de Salomé, abençoei os arrependidos e, mais do que nunca, acreditei na inquebrantável fidelidade futura de todos.
Continuavam injuriando-me sempre... Um letreiro com estas palavras: Eis o Rei dos judeus! foi colocado sobre minha cabeça.
Dois delinqüentes sofriam a meu lado o mesmo suplício; porém, contrariamente ao que se diz, eles não me insultaram.
Os soldados que me haviam crucificado repartiam minhas vestes entre si e lúgubres gracejadores dirigiam-me palavras como estas:
“Desce da cruz e acreditaremos na tua divindade.
“Chama teu pai para que venha libertar-te e pronuncia nossa condenação fazendo-nos morrer antes que tu.
“Dá-nos um cartão de entrada, Jesus, a fim de que nos seja concedido gozar de teu triunfo no reino de teu Pai.”
Meus olhos se nublaram: uma opressão mais violenta que as outras me confundiu e adormeci nas trevas humanas para despertar no seio das luminosidades divinas.
Eram mais ou menos três horas.
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